O Haiti é aqui

Yanick Lahens mostra por meio da ficção como seu país natal é matriz e molde para o Brasil e o mundo

Um país dividido entre ricos e pobres, de natureza exuberante, onde a violência se entrecruza com a profunda desigualdade. Uma nação que foi capaz de libertar seu povo da escravidão, mas ainda precisa construir o acesso aos direitos e à cidadania. Um território pintado por estereótipos e extremos: a miséria ou a beleza, as tradições ou os atrasos, a humanidade ou o terror. Eis o principal objetivo de Yanick Lahens ao contar por meio da ficção as histórias de seu Haiti natal: mostrar que a realidade é muito mais complexa e, por isso, mais bonita do que supõe uma visão rápida e superficial.

Seu A cor do amanhecer chega por aqui mais de uma década depois da publicação na França e é o primeiro lançamento da Paris de Histórias, jovem editora fundada em 2018 na capital francesa por Natalia Bravo, que tem o objetivo de fazer chegar ao Brasil a miríade de vozes da literatura contemporânea francófona.

Na trama, duas irmãs muito diferentes, Joyeuse e Angélique, narram a história de sua família, pertencente à classe pobre (Lahens usa o termo populaire) de Porto Príncipe. O foco do enredo é o desaparecimento do irmão Fignolé — nada incomum no ano em que se passa o romance, 2004, quando os sequestros eram moeda corrente por motivos políticos ou econômicos. O sumiço de Fignolé, militante do Partido dos Demunidos, tem a ver com sua atividade de oposição ao governo do então Presidente-Profetta, como Lahens chama Jean-Bertrand Aristide. Na família há ainda a Mãe do trio, com M maiúsculo, cujo nome desconhecemos, e Gabriel, o filho de Angélique.

É nesse núcleo sem figura paterna que a luta pela sobrevivência, pela dignidade e pela felicidade é travada, em um contexto de imensas dificuldades. E é em seu cotidiano que a autora espera que consigamos entender melhor como é a vida em uma cidade tão desigual como Porto Príncipe — que poderia ser tantas outras. Lahens escreve sobre seu país natal, onde vive desde 1977, com o objetivo de mostrar que o Haiti pode ser esse microcosmo que espelha a realidade do mundo. Um cenário que se repete, com outras cores e talvez em outras escalas, fazendo parte do mesmo caleidoscópio.

‘O Haiti passará por quarentena, dívidas e trocas desiguais antes de todos os outros países’

“Aos meus olhos, e tenho escrito frequentemente sobre isso, o Haiti é uma matriz e um molde. Ele inaugura as relações Norte-Sul porque é o primeiro país deste Sul fabricado pelo Ocidente. Passará por quarentena, dívidas e trocas desiguais antes de todos os outros”, diz Lahens a esta reportagem. Vinda de uma família de classe média, ela foi para Paris aos quinze anos para estudar e ali permaneceu  após completar seu mestrado. Jamais pretendeu, no entanto,  exilar-se: “Nunca me imaginei vivendo em outro lugar. Quis colocar à prova meus conhecimentos acadêmicos e teóricos no Haiti real e contribuir com o que poderia em minha comunidade. Mas sublinho que também voltei porque podia. Encontrei um ancoradouro que me protegeu das privações que a grande maioria experimenta”.

“Escrever me salva, todos os dias, várias vezes por dia”, declarou ao apresentar o livro, então recém-lançado, no festival literário francês Étonnants Voyageurs, em 2010. Pesquisadora e professora universitária, Lahens integrou inúmeras organizações multilaterais e literárias para a promoção da cultura e da literatura haitianas. Neste 2022, perto de completar setenta anos, o faz de forma ainda mais pragmática e ativa, por meio de sua própria organização, trabalhando diretamente com a juventude.

“Gosto de manter o contato com os jovens porque é uma maneira de não perder o pulso do mundo ao meu redor. Ao contrário do que aconteceu com a minha geração, os jovens da classe trabalhadora estão entrando nas artes de maneira intensa”, diz. “Há uma vitalidade no campo artístico que é surpreendente quando se conhecem as dificuldades que eles têm que enfrentar para sobreviver. A arte não pode mudar a situação social, mas mantém as pessoas diabolicamente saudáveis no meio do infortúnio.”

A escritora presidiu a cátedra dos mundos francófonos (no plural, para valorizar sua diversidade) do prestigioso Collège de France em 2019. Em uma entrevista à revista semanal Marianne, diz não ter se dado conta do impacto simbólico de ser uma mulher negra nessa instituição tão “tradicional” (em 2016, o escritor franco-congolês Alain Mabanckou foi o primeiro homem negro e romancista a fazer o discurso inaugural do evento).

‘Escrevo para experimentar por dentro as respostas sempre imperfeitas às minhas perguntas íntimas’

O racismo, a colonização, a desigualdade e o desequilíbrio do mundo estão sempre presentes, de maneira às vezes sarcástica, às vezes bem-humorada, nas falas da autora e também em A cor do amanhecer. Como Lahens afirma, “quando escrevo [ficção], é impossível separar a intimidade dos personagens do contexto social em que vivem”. Algo visível quando uma das irmãs, Joyeuse, fala da amizade com Lolo, sua amiga inseparável:

Na adolescência, nossa amizade se firmou por conta das músicas francesas. Transcrevíamos suas letras nas páginas de cadernos da escola. De bruços no chão, joelhos dobrados, pernas balançando de trás para frente, cantarolávamos todas essas letras das quais irradiava o azul da felicidade, sonhando com um homem rico e bonito, branco de preferência, que viria nos levar desse bairro sórdido num carro de luxo ou de avião, até mesmo de iate.

Dualidade

Joyeuse e Angélique, que se alternam na narração, têm personalidades e percursos diversos — dualidade que exige do(a) leitor(a) atenção e presença, ao mesmo tempo que relembra como a realidade é formada por tantos pontos de vista. Não há só uma maneira nem maneira correta de olhar os acontecimentos do mundo. E essa alternância de vozes acontece com tanta sutileza que poderia sugerir que as irmãs são, na verdade, uma só, possibilidade que nos impele a pensar na complexidade das questões identitárias.

O momento do desaparecimento do irmão ativista ancora a história no contexto dos movimentos sociais que culminaram com a deposição de Jean-Bertrand Aristide e a ocupação temporária das forças de segurança da Organização das Nações Unidas, os famosos “capacetes azuis”. Nenhuma cor da realidade escapa às reflexões mais íntimas de seus personagens.

Naquela tarde, sentado no degrau da entrada de casa, Fignolé não conseguiu se conter e declarou no tom de quem acabava de ganhar na loteria:

“John é um amigo, um jornalista americano.”
John colocou a mochila ao lado da sua cadeira e imediatamente nos disse:
“Eu amo esse país, amo os pobres.” Pronunciou essa frase como outros dizem sou médico, encanador ou advogado.
Antes de conhecer John, eu não sabia que era possível ganhar a vida amando os pobres. Que amar os pobres era uma profissão.

“Em meus textos, gosto de operar este entrelaçamento entre o íntimo e o social, entre o sujeito e a história. No caso do Haiti, não é fácil sair dos clichês que têm sido construídos de forma inteligente e pertinente desde o século 19 para apresentar o país como uma maldição de negros incapazes de fazer história. Não escrevo para demonstrar, mas para experimentar por dentro as respostas sempre imperfeitas às minhas perguntas íntimas”, diz.

Lahens recebeu o prêmio Femina, em 2014, por seu livro Bain de lune (Banho de lua), em que mostrou que o mundo rural haitiano tinha outras histórias para contar. Em 2019, quando perguntaram a ela o que esperava de seu país, na ocasião de seu discurso no Collège de France, disse que, apesar de o Haiti ter conseguido se projetar na modernidade com sua revolução e sua independência e ter se constituído como a primeira nação livre e negra das Américas, por muitos motivos não avançou na construção de uma sociedade contemporânea mais justa — ela lembra sempre que o país pagou à França uma indenização pela abolição até 1945. Para Yanick, falta o essencial: a “construção cidadã de uma sociedade, onde a diferença entre quem tem e quem não tem ainda é enorme”.

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